Mais de dez milhões de veículos usados e seminovos são vendidos anualmente no Brasil, sendo considerado o terceiro maior mercado desse segmento no mundo. Estima-se que existam cerca de 60.000 lojas dos mais diversos portes atuando nesse segmento em nosso país. Isso demonstra a relevância do setor para a economia nacional, pois além da geração de milhares de empregos diretos e indiretos, há ainda o recolhimento de milhões de reais em tributos.
E é acerca da tributação desse segmento que pretendo abordar neste texto, pois apesar de muitos empresários já terem adotarem as medidas judiciais cabíveis, uma grande parte ainda continua pagando impostos além do devido, provavelmente por desconhecimento.
Em suma, trata-se da possibilidade de reduzir a base de cálculo do IPRJ e da CSLL de 32% para 8% e 12%, respectivamente, da receita bruta. Excelente ganho né? Vamos entender um pouco mais o assunto.
O problema está numa interpretação errada da Receita Federal quanto aos artigos 15 e 20 da Lei 9.249/95 e do artigo 5º da Lei 9.716/95.
O fisco insiste em incluir as atividades de “compra e venda de veículos usados” e, também, a de “venda por consignação” no regime de tributação específico para “prestação de serviços”, que utiliza base de cálculo de 32% da receita bruta.
Entretanto, a “venda por consignação” e tampouco a “compra e venda de veículos” devem ser considerados prestação de serviços. A segunda hipótese, é bem evidente. Já a primeira poderia até causar alguma confusão, mas apenas para leigos, porque juridicamente a “venda por consignação” é um contrato de “comissão” e não de prestação de serviços.
O doutrinador Arnaldo Wald pontua bem essa diferença:
O contrato [de comissão] pode ser com a remessa de mercadorias ao comissário ou sem a remessa; esta pode fazer-se antes ou depois da venda. Quando as mercadorias são enviadas antes da venda ao comissário, este se torna depositário delas, sendo o contrato conhecido como “venda por consignação”. Neste caso, o comitente passa a ser o ‘consignante’ e o comissário passar a ser o ‘consignatário’. O contrato [de comissão] não se confunde com a prestação de serviços, pois o comissário responde perante terceiros (…)” (WALD, Arnoldo. Obrigações e contratos. 10ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1992, p. 411)
Repetindo, é inaceitável tratar como se fosse “prestação de serviços” a “venda por consignação” e mais ainda a “compra e venda” de veículos usados.
Outro aspecto do tema é quanto ao artigo 5º da Lei 9.716/95, que estabelece o seguinte:
Art. 5º – As pessoas jurídicas que tenham como objeto social, declarado em seus atos constitutivos, a compra e venda de veículos automotores poderão equiparar, para efeitos tributários, como operação de consignação, as operações de venda de veículos usados, adquiridos para revenda, bem assim dos recebidos como parte do preço da venda de veículos novos ou usados.
Parágrafo único – Os veículos usados, referidos neste artigo, serão objetos de Nota Fiscal de Entrada e, quando da venda, de Nota Fiscal de Saída, sujeitando-se ao respectivo regime fiscal aplicável às operações de consignação.
Acontece que é absurdo extrair desse dispositivo comando normativo que inclua, para fins de tributação, como prestação de serviços a compra e venda ou mesmo a venda por consignação. O que referido artigo faz é possibilitar a equiparação da compra e venda a consignação, que, como visto acima, se trata de um contrato de comissão, o qual não se inclui no conceito de prestação de serviços.
É com base nessa fundamentação que os tribunais brasileiros entendem que a tributação das operações de compra e venda e, também, de consignação de veículos deve ser de 8% para o IRPJ, com base no caput do artigo 15, e de 12% para a CSLL, nos termos do caput do artigo 20, ambos da Lei 9.249/1995:
Art. 15 – A base de cálculo do imposto, em cada mês, será determinada mediante a aplicação do percentual de 8% (oito por cento) sobre a receita bruta auferida mensalmente, observado o disposto no art. 12 do Decreto-Lei n. 1.598, de 26 de dezembro de 1977, deduzidas das devoluções, vendas canceladas e dos descontos incondicionais concedidos, sem prejuízo do disposto nos arts. 30, 32, 34 e 35 da Lei n. 8.981, de 20 de janeiro de 1995.
Art. 20. A base de cálculo da Contribuição Social sobre o Lucro Líquido (CSLL) devida pelas pessoas jurídicas que efetuarem o pagamento mensal ou trimestral a que se referem os arts. 2º, 25 e 27 da Lei nº 9.430, de 27 de dezembro de 1996, corresponderá aos seguintes percentuais aplicados sobre a receita bruta definida pelo art. 12 do Decreto-Lei nº 1.598, de 26 de dezembro de 1977, auferida no período, deduzida das devoluções, das vendas canceladas e dos descontos incondicionais concedidos: (Redação dada pela Lei Complementar nº 167, de 2019)
I – 32% (trinta e dois por cento) para a receita bruta decorrente das atividades previstas no inciso III do § 1º do art. 15 desta Lei;
II – 38,4% (trinta e oito inteiros e quatro décimos por cento) para a receita bruta decorrente das atividades previstas no inciso IV do § 1º do art. 15 desta Lei; e
III – 12% (doze por cento) para as demais receitas brutas. (…)
Vejamos algumas decisões dos tribunais sobre esse tema.
TRIBUNAL REGIONAL FEDERAL DA 4ª REGIÃO – PR, SC e RS
(…) Pelo que se vê dos autos, a atividade econômica da autora consiste em comércio varejista de veículos usados e consignação de veículos (cf. evento 1, CONTRSOCIAL3, do processo originário). Por essa razão, sustenta que teria direito ao recolhimento do Imposto de Renda da Pessoa Jurídica (IRPJ) tendo como base de cálculo o percentual de 8% de sua receita bruta e da Contribuição Social sobre o Lucro Líquido (CSLL) tendo por base de cálculo o percentual de 12% de sua receita bruta, uma vez que sua atividade não se enquadra na prestação de serviços em geral. (…) Assim, resta descaracterizada a atividade da autora como prestadora de serviços, fazendo jus ao enquadramento na alíquota de 8% para o cálculo do IRPJ e de 12% para o cálculo da CSLL, caso em que evidenciada a probabilidade do direito invocado no processo de origem. (…). (TRF4, AG 5005442-04.2023.4.04.0000, SEGUNDA TURMA, Relator RÔMULO PIZZOLATTI, 17/02/2023)
MANDADO DE SEGURANÇA. APELAÇÃO. TRIBUTÁRIO. IRPJ E CSLL. BASE DE CÁLCULO. COMPRA E VENDA DE VEÍCULOS. ALÍQUOTAS APLICÁVEIS. 8% E 12%. Não é aplicável às empresas que têm como objeto social a compra e venda de veículos automotores, inclusive venda por consignação, o regime tributário de imposto de renda e contribuição social sobre o lucro líquido próprio da empresa dedicada à prestação de serviços em geral. (TRF4 5007836-34.2022.4.04.7205, PRIMEIRA TURMA, Relatora CARLA EVELISE JUSTINO HENDGES, juntado aos autos em 16/02/2023)
TRIBUNAL REGIONAL FEDERAL DA 3ª REGIÃO – SP e MS
TRIBUTÁRIO. MANDADO DE SEGURANÇA. COMPRA E VENDA DE VEÍCULOS USADOS. ALÍQUOTAS APLICÁVEIS. 8% E 12%. REMESSA NECESSÁRIA E RECURSO DE APELAÇAO DESPROVIDOS. 1. As atividades que envolvem a compra e venda de veículos usados, assim como a compra de veículo para revenda ou o recebimento de automóvel como parte do pagamento de outro não se enquadram no conceito de prestação de serviço, mas de simples operação de compra e venda, de modo que não se lhes aplica, para fins de tributação do IRPJ e da CSLL, a alíquota de 32% sobre a receita bruta. Precedentes do STJ e desta Turma. 2. “O Superior Tribunal de Justiça firmou compreensão segundo a qual o mandado de segurança é via adequada para declarar o direito à compensação ou restituição de tributos, sendo que, em ambos os casos, concedida a ordem, os pedidos devem ser requeridos na esfera administrativa, restando, assim, inviável a via do precatório, sob pena de conferir indevidos efeitos retroativos ao mandamus” (AgInt no REsp 1895331/SP, Rel. Ministro GURGEL DE FARIA, PRIMEIRA TURMA, julgado em 24/05/2021, DJe 11/06/2021) 3. Remessa necessária e apelação desprovidas. (TRF 3ª Região, 3ª Turma, ApelRemNec – APELAÇÃO / REMESSA NECESSÁRIA – 5002261-28.2020.4.03.6143, Rel. Desembargador Federal NERY DA COSTA JUNIOR, julgado em 17/12/2021, Intimação via sistema DATA: 18/01/2022)
PROCESSUAL CIVIL. AGRAVO LEGAL EM APELAÇÃO. ARTIGO 557, §1º, DO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL. IRPJ E CSLL. BASE DE CÁLCULO. COMPRA E VENDA DE VEÍCULOS. OPERAÇÃO MERCANTIL. AUSÊNCIA DE PRESTAÇÃO DE SERVIÇOS. INAPLICABILIDADE DO DISPOSTO NO ART. 15, § 1º, III, DA LEI 9.249/95. AGRAVO LEGAL IMPROVIDO.
1. O art. 5º da Lei nº 9.716/95, ao permitir a equiparação da operação de venda de veículos usados, adquiridos para revenda, bem assim dos recebidos como parte do preço da venda de veículos novos ou usados, à operação de consignação, fez com que tais atividades fossem equiparadas a um contrato de prestação de serviços, uma vez que inexiste previsão legal para o enquadramento como prestadora de serviço, para fins de tributação (IRPJ e CSLL), das empresas cujo objeto seja a compra e venda de veículos usados. 2. Tal atividade não se trata efetivamente de prestação de serviço, mas de simples operação de compra e venda, razão pela qual resta inaplicável a alíquota de 32% sobre a receita bruta, e por isso tem direito a autora de aplicar o coeficiente de 8% na base de cálculo do IRPJ e de 12% na base de cálculo da CSLL, previstos nos artigos 15, III, “a” e 20 da Lei 9.249/1995. 3. O E. Superior Tribunal de Justiça considera que a atividade desenvolvida pela parte autora não se caracteriza como prestação de serviço, mas simples operação de compra e venda. 4. Agravo legal não provido. (TRF 3ª Região, SEXTA TURMA, Ap – APELAÇÃO CÍVEL – 1380085 – 0019544-75.2006.4.03.6100, Rel. DESEMBARGADOR FEDERAL JOHONSOM DI SALVO, julgado em 30/07/2015, e-DJF3 Judicial 1 DATA:07/08/2015)
TRIBUNAL REGIONAL FEDERAL DA 5ª REGIÃO – AL, CE, PB, PE, RN e SE
TRIBUTÁRIO E PROCESSUAL CIVIL. TUTELA DE URGÊNCIA. COMPRA E VENDA DE VEÍCULOS USADOS. OPERAÇÕES DE CONSIGNAÇÃO POR COMISSÃO. ATIVIDADE CONSIDERADA COMO PRESTAÇÃO DE SERVIÇO PARA FINS DE TRIBUTAÇÃO NO SIMPLES NACIONAL. IMPOSSIBILIDADE. REQUISITOS. AUSÊNCIA. (…) “A existência de autorização legal, destinada ao contribuinte, para que equipare as vendas de veículos usados às operações de consignação (art. 5º, da Lei 9.716/98) não significa que estas atividades devem ser consideradas como prestação de serviço, para fins de definição da alíquota do IRPJ e da CSLL (arts. 15, III, “a” e 20 da Lei 9.249/95). Não há como se vislumbrar tal alcance às normas em questão, mormente porque, nem no caso de compra de veículo para revenda, nem no de recebimento de automóvel como parte do pagamento de outro, há, efetivamente, uma prestação de serviço, mas simples operações de compra e venda, as quais não se encontram nas exceções previstas pelos artigos 15 e 20 da Lei 9.249/95.” (AgRg no REsp 1160907/SC, Rel. Ministro Benedito Gonçalves, 1ª T., julgado em 14/02/2012, DJe 23/02/2012). 4. Como bem exposto na decisão agravada, as atividades que envolvem a compra e venda de veículos usados, assim como a compra de veículo para revenda ou o recebimento de automóvel como parte do pagamento de outro não se enquadram no conceito de prestação de serviço, mas de simples operação de compra e venda. Em consequência, a base de cálculo do Simples Nacional deve corresponder ao produto global das vendas realizadas em cada ano-calendário, com exceção, apenas, das vendas canceladas e dos descontos incondicionais concedidos ex vi do §1º do art. 3º da LC nº 123/2006. (…) (PROCESSO: 08030255020164050000, AGRAVO DE INSTRUMENTO, DESEMBARGADOR FEDERAL PAULO MACHADO CORDEIRO, 3ª TURMA, JULGAMENTO: 13/10/2016)
TRIBUNAL REGIONAL FEDERAL DA 1ª REGIÃO – DF, AC, AP, AM, BA, GO, MA, MT, PA, PI, RO, RR e TO
TRIBUTÁRIO. MANDADO DE SEGURANÇA. SENTENÇA SOB CPC/2015. IRPJ E CSLL. COMPRA E VENDA DE VEÍCULOS USADOS. CONSIGNAÇÃO. OPERAÇÃO MERCANTIL. EQUIPARAÇÃO À CONSIGNAÇÃO. PRESTAÇÃO DE SERVIÇOS. IMPOSSIBILIDADE. ALÍQUOTAS DE 8% E 12%. SENTENÇA MANTIDA. 1. Trata-se de apelação da União e remessa necessária em face de sentença que concedeu a segurança reconhecendo o direito da impetrante de adotar na presunção de lucro para apuração do IRPJ e CSLL, no Regime de Lucro Presumido, em relação às suas atividades de compra e venda de veículos usados e consignação, mesmo adotando a equiparação prevista no art. 5º da Lei Federal nº 9.716/1988, respectivamente, os percentuais de 8% (oito por cento) e 12% (doze por cento), na forma prevista nos arts. 15 e 20 da lei 9.249/95. 2. Ausência de previsão legal para que empresas que atuam no ramo de compra e venda de veículos usados sejam equiparadas a prestadora de serviço (consignação em comissão) para fins de tributação ( IRPJ e CSLL), uma vez que tal atividade é considerada simples operação mercantil de compra e venda. 3. O egrégio Superior Tribunal de Justiça reconheceu a existência de autorização legal, destinada ao contribuinte, para que equipare as vendas de veículos usados às operações de consignação (art. 5º, da Lei 9.716/98). Não significa que estas atividades devam ser consideradas como prestação de serviço, para fins de definição da alíquota do IRPJ e da CSLL (arts. 15, III, `a e 20 da Lei 9.249/95). (AgRg no REsp 1.160.907/SC, Rel. Ministro Benedito Gonçalves, Primeira Turma, DJe 23/02/2012. 4. Apelação e remessa necessária não providas. 5 . Honorários advocatícios incabíveis em Mandado de Segurança (art. 25 da Lei nº 12.016/2009). (AMS 1011312-70.2019.4.01.3800, JUIZ FEDERAL ITAGIBA CATTA PRETA NETO (CONV.), TRF1 – SÉTIMA TURMA, PJe 16/08/2022 PAG.)
Como se vê, os Tribunais Regionais Federais possuem entendimento em harmonia com o Superior Tribunal de Justiça, que já definiu o seguinte:
TRIBUTÁRIO. AGRAVO REGIMENTAL NO RECURSO ESPECIAL. ATIVIDADE DE COMPRA E VENDA DE VEÍCULOS USADOS. EQUIPARAÇÃO À CONSIGNAÇÃO PARA FINS DE APURAÇÃO DO IRPJ E DA CSLL. IMPOSSIBILIDADE. VIOLAÇÃO AOS ARTS. 15, § 1º, III, A, DA LEI 9.249/95 E 5º DA LEI 9.716/98. NÃO OCORRÊNCIA. CLÁUSULA DE RESERVA DE PLENÁRIO. NÃO VIOLAÇÃO. INTERPRETAÇÃO DO DIREITO INFRACONSTITUCIONAL.
1. Esta Corte, em caso análogo, já decidiu que “existência de autorização legal, destinada ao contribuinte, para que equipare as vendas de veículos usados às operações de consignação (art. 5º, da Lei 9.716/98) não significa que estas atividades devem ser consideradas como prestação de serviço, para fins de definição da alíquota do IRPJ e da CSLL (…). 2. No pertinente à alegação de ofensa à cláusula de reserva de plenário (art. 97 da CF) e ao enunciado 10 da Súmula Vinculante do Supremo Tribunal Federal, não há falar, na hipótese, em declaração de inconstitucionalidade do dispositivo legal tido por violado, tampouco afastamento deste, mas tão somente em interpretação do direito infraconstitucional aplicável ao caso, com base na jurisprudência desta Corte. Nesse sentido: AgRg no Resp 1.278.024/MG, Rel. Ministro Benedito Gonçalves, Primeira Turma, DJe 14/02/2013). 3. Agravo regimental a que se nega provimento. (AgRg no REsp n. 1.492.162/RS, relator Ministro Sérgio Kukina, Primeira Turma, julgado em 17/3/2015, DJe de 24/3/2015.)
DIANTE DESSE CENÁRIO, os empresários que atuam no ramo da compra e venda de veículos seminovos e usados devem ficar atentos quanto a essa importante possibilidade de relevante redução de sua carga tributária, com substancial diminuição de sua base de cálculo para o IRPJ e para a CSLL, por meio das medidas judiciais cabíveis.
APRESENTAÇÃO EM PDF SOBRE ESSE TEMA NO LINK ABAIXO: