INTRODUÇÃO
O artigo 1º da Constituição Federal Brasileira elege a dignidade da pessoa humana como um dos fundamentos de nossa República e, logo em seguida, no artigo 6º estabelece a saúde como um dos primeiros direitos fundamentais sociais. Mais adiante, no artigo 225 está previsto que “todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem como de uso do povo e essencial à sadia qualidade de vida”. Consequentemente um dos objetivos mais importantes das políticas de saúde pública é a universalização do saneamento ambiental.
Nesse mesmo sentido, em 28.07.2010 a Assembleia Geral da ONU aprovou a Resolução 64/292 que em seu item primeiro estabelece: “Reconece que el derecho al agua potable y el saneamento es um derecho humano esencial para el pleno disfrute de la vida y de todos los derechos humanos;”.
Como se nota, o saneamento ambiental possui destacada importância nos interesses gerais da humanidade e especialmente do Brasil, onde cerca de 35 milhões de brasileiros ainda não possuem acesso a água potável e 100 milhões não têm atendimento à coleta de esgoto, conforme dados do Instituto Trata Brasil, para o ano de 2022.
Por isso, devem ser incentivadas medidas que visem reverter ou amenizar esse lastimável quadro, que gera danosas implicações à saúde da população, principalmente a de baixa renda.
Apesar disso, na contramão dos discursos políticos, os gestores públicos municipais insistem em desincentivar as obras saneamento das cidades, impondo ilegalmente a taxação do ISS – Imposto Sobre Serviços.
ASPECTOS JURÍDICOS
Os fiscos municipais fundamentam suas exações nos subitens 7.02 e 7.12 constantes da lista de serviços anexas à Lei Complementar 116/03, que dispõe sobre o ISS. A redação desses dispositivos é a seguinte:
7.02 – Execução, por administração, empreitada ou subempreitada, de obras de construção civil, hidráulica ou elétrica e de outras obras semelhantes, inclusive sondagem, perfuração de poços, escavação, drenagem e irrigação, terraplanagem, pavimentação, concretagem e a instalação e montagem de produtos, peças e equipamentos (exceto o fornecimento de mercadorias produzidas pelo prestador de serviços fora do local da prestação dos serviços, que fica sujeito ao ICMS).
(…)
7.12 – Controle e tratamento de efluentes de qualquer natureza e de agentes físicos, químicos e biológicos.
Acontece que essas previsões acima transcritas se aplicam somente ao contexto da construção civil, hidráulica e elétrica, não se confundindo e não abrangendo obras de saneamento ambiental. Prova disso é que no texto legal que foi para sanção presidencial no ano de 2003, havia previsões expressas nos subitens 7.14 e 7.15 que possibilitariam a incidência do ISS sobre as obras de saneamento ambiental:
7.14 – Saneamento ambiental, inclusive purificação, tratamento, esgotamento sanitário e congêneres.
7.15 – Tratamento e purificação de água.
Por contrariar o interesse social na universalização dos serviços de saneamento ambiental, o Presidente da República vetou esses dois subitens, acertadamente, pois a imposição de mais essa carga tributária seria um fator de desestímulo e encarecimento desses serviços, prejudicando, principalmente, os mais pobres.
O veto presidencial foi contundente nesse sentido:
A incidência do imposto sobre serviços de saneamento ambiental, inclusive purificação, tratamento, esgotamento sanitários e congêneres, bem como sobre serviços de tratamento e purificação de água, não atende ao interesse público. A tributação poderia comprometer o objetivo do Governo em universalizar o acesso a tais serviços básicos. O desincentivo que a tributação acarretaria ao setor teria como conseqüência de longo prazo aumento nas despesas no atendimento da população atingida pela falta de acesso a saneamento básico e água tratada. Ademais, o Projeto de Lei nº 161 – Complementar revogou expressamente o art. 11 do Decreto-Lei nº 406, de 31 de dezembro de 1968, com redação dada pela Lei Complementar nº 22, de 9 de dezembro de 1974. Dessa forma, as obras hidráulicas e de construção civil contratadas pela União, Estados, Distrito Federal Municípios, autarquias e concessionárias, antes isentas do tributo, passariam ser taxadas, com reflexos nos gastos com investimentos do Poder Público.
Dessa forma, a incidência do imposto sobre os referidos serviços não atende o interesse público, recomendando-se o veto aos itens 7.14 e 7.15, constantes da Lista de Serviços do presente Projeto de lei Complementar. Em decorrência, por razões de técnica legislativa, também deverão ser vetados os inciso X e XI do art. 3º do Projeto de Lei.
Vale lembrar que após esse veto, mais de uma vez já se tentou a aprovação de projetos de lei (PLS 386/2012 e PLC 155/2019) objetivando inserir itens na Lei Complementar 116/2003 com idêntica redação, a fim de satisfazer a sanha arrecadatória dos municípios, porém, todas as investidas restaram infrutíferas.
Desse modo, todos os serviços relacionados ao saneamento ambiental, desde sua construção, até sua disponibilização ao consumidor final, devem ser livres do ISS. As obras de saneamento ambiental, incluem-se na previsão (vetada) de exação sobre o saneamento ambiental, por meio de uma interpretação extensiva, essa já validada pelo Supremo Tribunal Federal no tema 296.
JURISPRUDÊNCIA
O Superior Tribunal de Justiça e os Tribunais de Justiça dos Estados têm reiteradamente decidido a favor do contribuinte, afastando a incidência do ISS sobre obras e serviços de saneamento básico. Bom para o país, que precisa muito melhorar seus índices nessa área, bom para a população, principalmente para os mais carentes.
Vejamos alguns exemplos dessas decisões:
SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA:
TRIBUTÁRIO E PROCESSUAL CIVIL. AGRAVO INTERNO EM AGRAVO EM RECURSO ESPECIAL. ISS. INCIDÊNCIA SOBRE OBRAS E SERVIÇOS DE SANEAMENTO BÁSICO. IMPOSSIBILIDADE. ITENS VETADOS PELA PRESIDÊNCIA DA REPÚBLICA. FUNDAMENTO NÃO IMPUGNADO NO AGRAVO INTERNO. INCIDÊNCIA DA SÚMULA 284 DO STF. RECURSO NÃO PROVIDO.
1. Trata-se de ação na qual se busca a declaração de inexistência de relação jurídico-tributária referente à não incidência do ISS sobre a execução de serviços destinados à implantação de sistema de esgotamento sanitário, decorrente de contrato firmado entre a empresa apelada e a CAERN.
2. Na hipótese dos autos, constata-se que o caso em questão se enquadra na hipótese dos itens 7.14 e 7.15 da lista anexa à LC 116/2003, os quais possuem a seguinte redação (grifamos): “7.14 – Saneamento ambiental, inclusive purificação, tratamento, esgotamento sanitário e congêneres. 7.15 – Tratamento e purificação de água”.
3. Os itens 7.14 e 7.15, contudo, foram vetados pelo Presidente da República. Dessa forma, não incide o ISS sobre serviço de saneamento ambiental, inclusive purificação, tratamento, esgotamento sanitário e congêneres, nem sobre tratamento e purificação de água (REsp 1.761.018/MT, Rel. Min. Herman Benjamin, Segunda Turma, DJe 17/12/2018 e AgInt no AgRg no AREsp 471.531/DF, Rel. Min. Herman Benjamin, Segunda Turma, DJe 2.9.16).
4. Note-se que o fundamento do decisum recorrido – de que os itens 7.14 e 7.15 da lista anexa à LC 116/2003 foi revogado pelo Presidente da República – foi utilizado de forma suficiente para manter a decisão recorrida e não foi rebatido no Agravo Interno, o que atrai os óbices das Súmulas 283 e 284, ambas do STF, em razão da violação ao princípio da dialeticidade (AgRg no RMS 43.815/MG, Rel. Min. Benedito Gonçalves, Primeira Turma, DJe 27/5/2016).
5. Agravo Interno não provido.
(AgInt no AREsp n. 1.953.446/RN, relator Ministro Herman Benjamin, Segunda Turma, julgado em 28/3/2022, DJe de 12/4/2022.)
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO PARANÁ:
APELAÇÃO CÍVEL. TRIBUTÁRIO ISS. AÇÃO DECLARATÓRIA DE INEXIGIBILIDADE DE TRIBUTO. AMPLIAÇÃO DE SISTEMA DE ESGOTO SANITÁRIO. CONTRATO COM A ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA. ALÍQUOTA DE 2% SOBRE A BASE DE CÁLCULO DA MÃO DE OBRA. ALEGAÇÃO DE ILEGALIDADE NO ATO DE RETENÇÃO DO IMPOSTO, DE VEZ QUE AS OBRAS DE SANEAMENTO E ESGOTO NÃO CONSTITUEM FATO GERADOR DO IMPOSTO. SENTENÇA DE PROCEDÊNCIA.II – PRELIMINAR. ALEGAÇÃO DE SENTENÇA EXTRA PETITA. SENTENÇA ILÍQUIDA. AUSÊNCIA DE INTERESSE RECURSAL DA PARTE RÉ. APLICAÇÃO DA SÚMULA 318 DO STJ. RECURSO NÃO CONHECIDO QUANTO AO PONTO.III – EXECUÇÃO DE OBRAS DE AMPLIAÇÃO DO SISTEMA DE ESGOTO SANITÁRIO DO MUNICÍPIO. NÃO INCIDÊNCIA DO ISS. VETO PRESIDENCIAL AOS ITENS 7.14 E 7.15 DA LISTA DE SERVIÇOS ANEXA À LEI COMPLEMENTAR Nº 166/2003, OS QUAIS PREVIAM A TRIBUTAÇÃO SOBRE OS SERVIÇOS DE SANEAMENTO, ESGOTAMENTO E TRATAMENTO SANITÁRIO, BEM COMO SOBRE OS SERVIÇOS DE TRATAMENTO E PURIFICAÇÃO DE ÁGUA.IV – JUROS MORATÓRIOS. NATUREZA TRIBUTÁRIA. APLICAÇÃO DO TEMA 905 DO STJ. SENTENÇA MANTIDA.V – RECURSO PARCIALMENTE CONHECIDO E, NA PARTE CONHECIDA, NÃO PROVIDO. (TJPR – 3ª Câmara Cível – 0008209-51.2020.8.16.0190 – Maringá – Rel.: DESEMBARGADOR JORGE DE OLIVEIRA VARGAS – J. 17.11.2022)
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO MATO GROSSO DO SUL
E M E N T A-APELAÇÃO CÍVEL – MANDADO DE SEGURANÇA – ISSQN – NÃO INCIDÊNCIA – PRESTAÇÃO DE SERVIÇOS DE MANUTENÇÃO DE POÇOS ARTESIANOS, LIMPEZA DE RESERVATÓRIOS E TRATAMENTO DE ÁGUA – NÃO CONTEMPLADA NA LISTA ANEXA A LEI 116/06 – ITENS 7.14 E 7.15 PREVIAM – VETADOS – SENTENÇA REFORMADA – SEGURANÇA CONCEDIDA – RECURSO PROVIDO. O fato de a lista anexa ser taxativa, numerus clausus, não afasta a interpretação extensiva que se possa fazer para as diversas atividades que enuncia – o que é diferente de lançar mão da analogia para incluir serviços não elencados na lei. Os serviços prestados pela autora não possuem previsão específica na Lista de Serviços aprovada pela LC nº 116/03, sendo que seriam contemplados para fins do ISS, conforme itens nºs 7.15 (¨tratamento e purificação de água¨) e 7.14 (¨saneamento ambiental, inclusive purificação, tratamento, esgotamento sanitário e congêneres¨), que foram vetados sob a justificativa de que a incidência do imposto sobre tais serviços contraria o interesse público, pois poderia comprometer a sua universalização, já que a nova tributação traria um desincentivo ao setor e aumento nas despesas no atendimento da população. Em consequência, imperiosa a concessão da segurança para assegurar a não incidência de ISSQN sobre os serviços prestados pela impetrante. (TJMS. Apelação Cível n. 0802110-72.2013.8.12.0001, Campo Grande, 2ª Câmara Cível, Relator (a): Des. Marcos José de Brito Rodrigues, j: 19/08/2014, p: 20/08/2014)
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DE SÃO PAULO:
Mandado de Segurança – Agravante que celebrou contrato com a SABESP para a execução de obras de saneamento básico – Veto Presidencial ao subitem 7.14 da Lista de Serviços Anexa à LC n° 116/03 – Não incidência do ISS – Recurso provido. (TJSP; Agravo de Instrumento 0246760-14.2009.8.26.0000; Relator (a): Osvaldo Capraro; Órgão Julgador: N/A; Foro de Itaquaquecetuba – 1.VARA CIVEL; Data do Julgamento: 29/04/2010; Data de Registro: 12/05/2010)
Como se observa das decisões acima, os tribunais afastam a incidência do ISS sobre as obras de saneamento básico, em harmonia com as razões do veto presidencial e de seus fundamentos sociais de universalização do saneamento básico.
Pelo que foi demonstrado neste artigo, a incidência do ISS sobre as obras de saneamento ambiental é ilegal, pois os subitens 7.02 e 7.12 da LC 116/2003 tratam de construção civil, hidráulica e elétrica e não abrangem o saneamento ambiental. Isso fica ainda mais evidente com o fato de que no texto levado à sanção presidencial havia previsão expressa para a exação do saneamento ambiental e foi vetado com a justificativa de que implicaria em aumento de custos, prejudicando o objetivo de universalização do saneamento básico. Corrobora esse argumento as tentativas infrutíferas de incluir itens com as mesmas redações já vetadas. Assim, acertado o posicionamento dos Tribunais em declarar a não-incidência de ISS sobre as obras de saneamento básico.
COLETA DE LIXO E MANEJO DE RESÍDUOS
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